Titã

Em seu livro “Mémoires sur Napoléon”, um clássico da literatura francesa, Stendhal expressouuma espécie de sentimento religioso que o dominava ao escrever a vida de Napoleão, para ele e para tantos europeus, ainda hoje, o maior homem que surgiu no planeta depois de César. Havia uma razão convincente para tamanha admiração. Consta que, jovem ainda, o pequeno Capitão de Artilhariaera um leão de clarividência e estratégia, e apareceria como faísca,vencendo em Toulon e pondo fim aos seguidos desastres do apático governo do Diretório. A partir de então, vitórias seguidas desse jovem excepcional viriam a fecundar os corações dos que defendiam não apenas os ideais da revolução francesa, mas também o fim da corrupção, o fim dos privilégios dos nobres e do clero, e o estabelecimento de um governo forte que não desse espaço aos jacobinos e monarquistas. Evidentemente, tal ideário levou Napoleão a ser atacado de todos os lados pelos monarcas europeus que temiam o alastramento em seus reinos do terrível “vírus” da justiça social e da liberdade.

Meu avô paterno era fascinado pela figura de Napoleão e se dedicou a estudá-lo e a admirá-lo grande parte da vida. Acreditava que, quanto mais fosse conhecida a verdade sobre as intrigas e represálias das casas imperiais europeias contra os ideais de mudançada Revolução Francesa, maior Napoleão seria perante a história. Porém, ele não sabia o que sabem hoje os africanos: enquanto os leões não aprenderem a escrever, os heróisdos compêndios escolares serão sempre os caçadores. Por isso, o que mais se lê hoje, disseminado feito cancro nos livros escolares e acadêmicos, é a versão absolutamente simplista de que Napoleão, o grande soldado, general de brigada aos 24 anos, líder de homens, avatar maior da liberdade, defensor titânicodos ideais revolucionários de sua época, e estadista como jamais a Europa daquela época viu, seria apenas um, pasmem…ditador.

Ora, ditador de quem ou contra quem, caras pálidas? Dos franceses é que não era, nem de todos aqueles que apoiavam as cores revolucionárias que se alastravam pelas cidades e províncias onde não havia nem liberdade, nem igualdade, nem fraternidade.Contudo, a realeza europeia, ultrapassada e carcomida de vilezas, que sentia escoar-se debaixo dos pés os trilhos da história, havia decidido unir-se entre si para derrubá-lo, militarmente e moralmente. E esses olharestirânicos e decadentes, que o enxergavam como uma ameaça, fizeram de tudo o que havia de mais ignóbil, e um pouco mais, para desarticular o movimento revolucionário atualíssimoque ele representava. Pouco adiantou.

Como um raio de luz, Napoleão não tardou a ser amado pela imensa maioria do povo francês. Graças ao seu gênio político-militar, tornou-se a figura de maior relevo e o verdadeiro “condottiere” de seu tempo, na frente de todos os monarcas epara tristeza dos intrigantes e traidores. Sua capacidade de aperfeiçoar o mundo que o cercava o levou a criar várias instituições importantes, como o Banco de França, a restabelecer a Igreja em seu país, a criar um código civil de imenso alcance jurídico, que consubstanciou os princípios defendidos pela revolução francesa e influenciou profundamente as legislações europeias, a gerir de forma inovadora e eficaz os empreendimentos que a empresa de sua pirâmide de poder representava, entre tantas outras qualidades. Segundo o historiador Paul Johnson, com exceção de Jesus Cristo, por mérito próprio, Napoleão é a personalidade humana sobre quem existe o maior número de livros publicados.

Naturalmente, tal extraordinária e fulgurante inteligência não agradava aos membros da injustíssima ordem aristocrática que predominava na época, e não tardaram a disseminar a imagem falsa de um Napoleão conquistador, quando no fundo o “Imperador dos Franceses”era um libertador, aquele que tinha o destino de implodir as hierarquiasarbitrárias da época.Elas sim eram ditatoriais, não ele. E se ele se autoproclamou Imperador um dia, e colocou seus familiares e homens de confiança nos tronos da Europa, foi para garantir a lealdade e a governabilidade do novo ordenamento. Foi também para ser aceito e se comunicar melhor com aqueles soberanos inflexíveis, intolerantes, verdadeiros tiranos conservadores, inimigos das mudanças que a França simbolizava e que os amedrontava de forma apavorante, pois, temerosos de seus povos, viam-se perdendo suas cabeças na guilhotina.

No passar de meia geração, a França de Napoleão se tornou um berço estável de justiça e progresso. Sendo Imperador,o estrategista universal se tornou mais palatável à realeza europeia da época, que observava, assustada e aturdidaas transformações legais, jurídicas, urbanas, sociais e culturais que davam nova face à vanguarda do continente europeu, empoeirado e carcomido pelas traças doatraso. Por isso, é difícilsintetizar a grandeza da trajetória de Napoleão, comsuas vitórias políticas, as batalhas desiguais que conseguiu vencer – um exército contra muitos exércitos. Seriam necessários milhares de páginas, e não apenas estas linhas comedidas, para outorgar ao leitor a noção da geometria refletida nas suas estratégias, a sabedoria de seu gênio vigoroso.

Entretanto, não era possível deixar esse corsosem eira nem beira transtornar a velha ordem imperial. Havia que esmaga-lo a qualquer custo. E aí entraram as conspirações, a espionagem, o dinheiro dos reis, a corrupção dos traidores, as campanhas de desinformaçãoe a pequenez dos homens pequenos. Ao ser detido por eles, no final de toda uma campanha em que foi traído e vendido, demonstrou sua grandeza com as seguintes palavras: – “Sou declarado culpado sem ser ouvido. Declaram-me suspeito e lacram meus papéis. Se os malevolentes quiserem a minha vida, eu a estimo tão pouco. Tantas vezes a desprezei. Apenas a ideia de que ela pode ser útil à minha pátria faz-me suportar o fardo com coragem.” Disse outras frases também, registradas por historiadores, que sinalizam sua grandiosidade, tais como: “é melhor não ter nascido do que viver sem glória”; “o momento mais perigos é o da vitória”; “quando as pessoas param de reclamar, param de pensar”; “uma sociedade sem religião é como um navio sem bússola”; “o espírito sempre vence a espada”; “grande negócio faríamos comprando o homem pelo que ele vale e vendendo-o pelo que ele pensa que vale”.

E assim ocorreu. Os que pensavam que valiam alguma coisa fizeram o mundo dar um passo atrás, e Napoleão caiu. A mediocridade e a traição venciam com seus meios espúrios. Todavia, o desterrado de Santa Helena, covardemente destratado e humilhado por seus algozes no fim da vida, permanece grande, imenso, gigantesco e eterno no coração de muita gente, inclusive no meu. Basta-me isso.

(Raul de Taunay, Brasília, 6 de dezembro de 2014)

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