Estrondeiem, neurônios, estrondeiem, pois queremos imaginar que tudo o que a minha geração viveu desde que veio ao mundo, na metade do século passado, foi obra de um instante, e o que se seguirá até o fim de nossos dias sobre este planeta deverá ser ainda mais veloz, prenunciando uma proximidade incômoda ao inevitável salto a que estamos fadados a dar no vazio misterioso da eternidade: já não temos voz, mas teimamos em cantar, já não temos pernas, mas insistimos em avançar, a passos rápidos, o pensamento aberto a nos descompor para seguir a onda que nos arrasta; no entanto, salvo raras exceções, somos todos apanhados no trambulhão do caldo; porém, via das vezes, nos rearranjamos para adquirir certa autoridade nos afazeres, no convívio social e familiar, alguma audiência para nossos casos e conselhos, todavia nossa página acaba, cedo ou tarde, sendo inevitavelmente virada, terminada, revertida num testamento com palavras de louvor, apólices, álbuns de fotografias, vídeos para descobrir o que faltou conhecer, o que faltou aproveitar, o pouco além que não se fez, e quem tiver aonde se esconder, que o faça no quarto do fundo, em alguma cobertura ou barraco; a chácara é uma opção privilegiada e digna onde mudas de flores frutificam, abelhas do jardim darão o mel, frutas e legumes plantados serão saborosos e um ou outro animal de estimação servirá para nos dar o pretexto de falar sozinhos, sem o perigo de nos considerarmos “piradinhos da silva” – talvez até um bom cavalo para montar seja uma opção nobre e fidalga para quem tem saúde, uma boa coluna vertebral e deseja atacar moinhos de vento (eu prefiro lançar versos para a Dulcineia), contudo, independentemente de nossas preferências, acabamos todos em guerra ou em paz, e caberá a cada um preparar a alma numa ou na outra direção pois, seja qual for, a humanidade que nos sucede não dará mesmo a mínima importância para nossos devaneios ou estados de espírito, a não ser que tenhamos amor; ah sim… aí a coisa cola pois encarar a vida com amor é uma outra percepção: o tempo se dilata, as cores ganham tonalidades novas, de fina aquarela, enquanto nos agigantamos diante do eterno como fenômenos a falar a linguagem aguardada, pois, afinal, para que brigar com a empregada se ela não sabe mesmo ou não tem, e não deveria ter, a mínima noção de etiqueta para trazer café na bandeja de prata; melhor ensiná-la a ler, afinal tão depressa passa a vida que melhor resulta poupar recriminações e ódios, quem se julga superior e pressupõe que jamais desmontará da sela está inteiramente iludido; estamos entrando no século da ciência, o formigueiro humano se organizará e quem se julgar acima dos demais cairá do cavalo pois vencerão sempre, no final de tudo, os insetos e vermes a devorar as carcaças dos presunçosos no fundo do buraco de alguma lacraia; a razão está na mente, a justiça no coração e, em volta de nós, tudo mudará sempre, e cada vez mais profundamente pois os anos não são estáticos – mesmo sem pêndulo, o relógio marca o tempo que passa; mesmo sem pena, as horas são escritas e reescritas; há pouquíssimo tempo atrás nem sabíamos o que era inbox, pendrive, internet, facebook, celular, cartão magnético, tv à cabo, etc, e isso é o começo…no fim, não haverá dor, nem doença, nem texto, nem vulgata, exata ou incompleta; não ficaremos num canto, como velhos vasos solitários ou sanitários, pois se tivermos amor, algo ficará de nós, sempre, como o resto de um todo, o pouco de um tudo, o que somos dentro de nossas essências, como pérolas finas dentro das conchas das ostras, fixadas às rochas marinhas; a terra nos será leve, não duvidem, e a vida será eterna; iremos todos até a porta do paraíso, encontrando-nos renovados do outro lado do regaço, como crianças renascidas, e aí nos lembraremos do que cantavam as nossas mães quando éramos crianças.
Trecho de “Nós” (Fragmentos filosóficos de tempos incertos), do escritor Raul de Taunay