“Dentre os alguns amores que se tem na vida, o primeiro amor é sempre conservado na memória como um momento doce em que a vida teria sido carinhosa conosco; no meu caso, ela tinha treze anos e eu era mais jovem ainda e bastaram-me alguns segundos para saber que nunca vira nada igual, que eu podia dizer tudo sobre ela: quem era, como nos conhecemos, o tom de sua face, a cor de seus olhos, as formas de seu corpo, como cheirava bem, quão maviosa era sua voz, o quanto me fazia estremecer… e eu ainda posso vê-la, senti-la perto de mim, recordar a tarde que passamos vendo o tempo voar; como amava sem verdadeiramente saber o que era o amor; como perdia o chão, os olhos fundos de desejo; como ardia inteiro numa fogueira de venturas entrelaçadas, e sucumbia de paixão, sem ter noção se tinha mesmo alguma; a primeiro apaixonada se recorda como se nunca tivesse partido, como se nunca se tivesse perdido, como se sempre a tivesse possuído; e irei sempre consolá-la de longe sem mesmo saber se, na vida, tenha sofrido; vou exaltá-la, sem remorsos ou culpas, porque ao faze-lo estarei exaltando a vida; hoje penso que sei o que é amar de verdade, e penso que sei também que, das preciosidades do mundo, o amor é o sentimento mais nobre e imponente, o estado de alma mais grandioso; assim pois ficou em mim o meu primeiro amor: imponente, grandioso, todavia, ingênuo e pueril, como já fomos todos – ah, o primeiro amor… quem não se recorda? Todavia, o que sobra dos grandes amores é a placidez do fogo que se alterou; quando acordamos cedo com as primeiras luzes do sol penetrando as vidraças da sala, onde havíamos dormido exaustos, de roupa e tudo, estirados no sofá, depois que um jantar com vista para a noite e com um fundo de violão tocado à luz da lua por algum filho; com os anos o amor se transfere para um canto no fundo da sala onde, se pudéssemos, passaríamos o tempo a escrevinhar todas as histórias e versos que ainda nos nasceriam do peito, numa nítida sensação de que os viajantes que fomos toda a vida fartaram-se de vagar pelos continentes, visitando metrópoles gigantescas, aldeias pequenas, desertos escaldantes, becos fechados, florestas estrondeantes, rios caudalosos, arranha-céus e torres de vidro estonteantes pelos caminhos e missões que nos levaram através deste planeta cada vez mais populoso e complexo; do nosso casulo pensamos melhor e formamos consciência da lucidez implacável que torna nossa prosa mordaz ao nos darmos conta de que, por mais paradoxal que possa parecer, a imobilidade e autossatisfação existencial, em vez de contribuir para o nosso amolecimento ou marasmo intelectual, nos levará a assumir cada vez mais a esgrima das palavras, a ousar a cada momento a arquitetura das imagens, a fulgurar a exploração de sonhos numa cabal e obstinada vocação de assumir nossa escrita num ritmo imolador, constante e enfurecido, que nos leve a um estado de insurreição permanente; quanto mais complexa e extenuante for a conjuntura em torno a nós, maior o festim de razões a nos empurrar no caminho da insubmissão; quanto mais escura estiver a madrugada, melhores os sonhos, as ficções e as alegorias que tenderão a virar fantasmas, anjos e demônios, afirmando no texto, dentro e fora de nós, que a vida não é moleza nem cabe dentro de esquemas; viramos malditos, insurretos do mundo, rebeldes? Verdadeiramente, não saberia dizer. O que sim tenho é a plena certeza de que a melhor maneira de descobrir as verdades do nosso universo, o mais sincero meio que possuo para servir os nossos semelhantes e nossa tão bela e monumental nação, é escrevendo com a máxima honestidade e rigor as nossas opiniões, os nossos costumes, as constelações que nos acossam nestes cantinhos que cada qual descobre no fundo de sua própria sala para ficar lendo, escrevendo ou pensando na vida, na saúde, nos passeios… nas mulheres?”
– Trecho de “Nós” (Fragmentos filosóficos de tempos incertos), do escritor Raul de Taunay.