Venho hoje celebrar uma das mais fascinantes figuras de nossa Amazônia: um poeta,imenso por sinal, e um filólogo eminente, além de grande jornalista, gramático, romancista e “conteur”. Estou falando de Paulino de Brito. Poucos brasileiros o conhecem hoje e muitos menos se recordarão dele se não relatarmos que foi ele uma das inteligências mais privilegiadas do século 19, que gravitou pela vida entre a ciência e a arte como num binômio goethiano de poesia e verdade: “dichtung und wahrheit.”
Nascido em Manaus em 1858, foi decisivo na vida cultural e acadêmicaamazônica, no período que vai do crepúsculo do Império ao advento da Primeira Guerra Mundial. Escritor e poeta como o Brasil raramente viu, Paulino de Brito é sem favor algum um dos marcos de real importância nas letras brasileiras, embora seu nome pertença ao Norte, e como essa região o foi, viu-se esquecido no Sudeste, Sul ou Nordeste, por onde escoa com maior facilidade a difusão editorial dos autores.
Num Norte em que estudantes universitários, associações maçônicas, jornalistas e poetas batiam-se com a pena e com a palavra pelas praças públicas e pelas colunas dos jornais, incendiando a imaginação do povo com comícios, debates e saraus sociais e populares, Mestre Paulino de Brito despontava como o mais fluente orador, o mais inspirado poeta e o mais patriota amazonense a defender ardorosamente a abolição. Duas de suas quadras definem a sua arte:
“No brônzeo pedestal, com brilho novo,
Hoje vos ergue a voz da humanidade:
Velho que deste à Liberdade um povo,
Mulher que deste um mundo à Liberdade.
E o brasileiro coração se expande
Vendo no trono, fulgurante e bela,
Depois de um Pedro como Pedro o Grande,
Uma Isabel maior que a de Castela.”
Quando leio estes e outros versos de Paulino de Brito, belos, viris, patrióticos, e vejo os poetas e escritores consagrados pela mídia ou academias repetirem frases de efeito ou ladainhas simplóriassobre o amor ou sobre a vida, muitas das quais com críticas vis à sua terra, com ares de descobridores, como se estivessem surpreendendo o mundo com sua vanguarda, vem-me aos lábios, por mais que procure me conter, um sorriso irônico. Eles não leram Paulino de Brito…
A grande força do Mestre dos amazonenses não se localizava apenas em seus artigos de jornal ou em seus romances, embora “O Homem das Serenatas” haja desenhado, à forma dos Goncouts, os costumes da sociedade amazonense de seu tempo. Nem estava apenas a sua força somente nas estórias e contos que imortalizou em “Contos”, ou no poeta que brindou a posteridade com seus “Cantos Amazônicos”. A virtude suprema de Paulino de Brito residia no gramático, ou melhor, no filólogo virtuoso que antecipou-se a todos os demais na questão de nossa língua nacional, a língua brasileira, que até hoje desperta tanta polêmica por ser uma questão tumultuosa e igualmente tumultuária. Ao lado da “Réplica” de Rui Barbosae da “Tréplica” de Carneiro Ribeiro, as obras “Brasileirismos” e “A Colocação de Pronomes”, constituem os pontos mais elevados da filologia brasileira.
Porém, como eu gosto mesmo é de poesia, aí vai um trecho de “Rio Negro”, obra prima do mestre Paulino:
“Na terra em que eu nasci, desliza um rio
Ingente, caudaloso,
Porém triste e sombrio;
Como a noite sem astros, tenebroso;
Qual negra serpe, sonolento e frio.
Parece um mar de tinta, escuro e feio:
Nunca um raio de sol, vitorioso,
Penetrou-lhe no seio:
No seio, em cuja profundeza enorme,
Coberta de negror,
habitam monstros legendários, dorme
toda a legião fantástica do horror.
Ó meu rio natal!
Quanto, oh! Quanto eu pareço-me contigo!
Eu, que no fundo do meu ser abrigo
Uma noite escuríssima e fatal!
Como tu, sob o céu puro e risonho,
Entre o riso e o prazer, o gozo e a calma,
Passo entregue aos fantasmas do meu sonho,
E às trevas de minha alma”
Paulino de Brito morreu em 1919, em Belém do Pará, e deixou centenas de admiradores entre os jovens daquele tempo. Um deles, meu avô materno, Pedro Paulo Penna e Costa, que se tornou advogado e veio para o Rio de Janeiro, onde acabou se tornando Ministro do Supremo Tribunal Eleitoral – e com quem vivi no meu período universitário – contava-me sempre de seu velho mestre, de suas obras, suas poesias, seu Rio Negro. Deus os tenha, a ambos.
(Raul de Taunay, Brasília, 27 de dezembro de 2014)