O EU QUE NÃO SOU
Penso que, para mim, seja complicado evitar-me. Certamente, eu deveria ser capaz de sair de minha pele por uns momentos, escapar de mim próprio, tirar férias desse eu que me coopta, todavia não consigo evitar o aroma de meu corpo com tanta intensidade quanto alcanço explodir de prazer e alegria a cada vitória do time do meu coração. Deve existir um motivo para eu estar agarrado a este corpo mediano, estas saliências faciais, esta textura e peso, esta massa muscular, esta expressão que não desgruda e que me embala, vida afora, como se fosse uma jangada irremediavelmente destinada a sulcar os oceanos e sobreviver às intempéries.
Simplesmente, decidi não mais me procurar. Ser livre para escapar do complexo sanguinolento de minha própria essência, trepar na árvore mais alta que margeia o rio da imaginação, sentar no galho mais resistente, por entre as elevadas copas, e matutar sobre como, em algum momento, escapulirei desta individualidade egotista para ser o eu que não sou.
E como poderia fazer isso, se venho ajustado ao conjunto do que me faz acertado comigo mesmo? Porque fugir do que me é agradável e me sustenta? Vou abrir mão do regozijo sincero que me toma, mesmo quando circundado de víboras venenosas e lobos esfomeados? A miscelânea de meu talhado me blinda. Valho-me desta carcaça, ainda saudável, que não quer abrir mão de mim; sendo o que sou e não o que gostaria, caso quisesse, aspiro apenas afugentar o frio, evitar finais violentos, sentar-me ao lado dos que me querem e colocar palha no meu próprio colchão. Somente isso, e já é tanto…
Sendo o eu que não sou, agora que virei um outro, verei o grande chefe de todos e mudarei o rumo da história e, se assim estiver escrito, irei mais longe, e escreverei de forma a imaginar que, finalmente, deixei para trás o que me prendia e fui encontrar o elefante que perambula pelas ruas da cidade desconhecida. Todavia, deverei voltar a mim um dia, reascender os circuitos de minha alma, posto que, como o fruto está destinado a cair sobre a terra para fecundar campos e saciar fomes, o que guardo do que sou mesmo e só eu vivi ninguém tira, nem mesmo o ser que não sou, porquanto um dia vou ter que descer do alto galho, encarar o que resta de meus traços e colher o que plantei.
Não há o que amaciar ou apimentar, apenas desejar-me boa colheita.
(Raul de Taunay, Congo-Brazzaville, 8 de outubro de 2016)