Escrever, escrever. Por quê?

William Shakespeare

Escrevemos, escrevemos, escrevemos… Escrevemos tanto que em nossas cabeças não existe mais a luz do dia ou a escuridão da noite; sentados ou em pé, no trabalho ou no lazer, passeando ou encafuados, digerindo, consumindo ou jiboiando, nossos pensamentos fazem que escrevamos e nos recordemos que ainda não escrevemos o que devemos ou o que ainda não formulamos – um escrito que não se fermentou, um monitor em que escrevemos o que escrevemos, e já foi tanto, mas nunca o suficiente, porquanto, quem escreve só quer escrever, descrever, exprimir-se, redigir, contar algo, compor a forma, sustentar a palavra, ortografar um caso, corresponder-se, informar, noticiar, manifestar anseios e convicções, assinalar meneios de dentro e gravar o que nunca terá fim e que, por fim, não germina nunca por inteiro pois não passa de verbo intransitivo circunstancial, arte indireta e irregular, não necessariamente certa, em que o destino também deseja impor sua pegada, escrever o quanto quer acertar seus ponteiros, arrumar a desordem, fomentar os estigmas para todos os formatos da figura geométrica da vida, escrevendo esta trajetória tão banal, tão comum, quase um desjejum que, para tornar-se inusitado, alardeia por odes e epopéias quando no fundo é mera sopa de cenouras com milho verde, entre quatro paredes, a escrever, a escrevinhar, a solapar o vento da tempestade para criar a absoluta inutilidade do registro escrito que, por não ser oral, alguém no fim poder recordar-se de ler – e para quê? – pois se escrevemos, escrevemos o que não havíamos escrito num mundo em que nos vemos escrevendo até o fim da última linha da última página do último almanaque que nos verá escrever o que escrevemos, sem segundas intenções ou propósitos que o de nos unir ao firmamento nevoento do que intentamos escrever; e escrevemos versos em vez de sermões porque presenciamos o triste naufrágio dos mais puros ideais e das utopias; escrevemos poemas em vez de panfletos porque cansamos de alardear nossas convicções num mundo pulverizado por interesses repulsivos, escrevemos odes em vez de teses porque nos imaginamos dentro de um surrealismo tumultuado, que se desconjunta entre apartes, raciocínios e exclamações da mais ingênua vivacidade, surrealismos temperados aos solavancos, a enfrentar galhardamente a dialética grotesca e arbitrária de nossos tempos; então, com isso, eis que escrevemos porque não conseguimos evitar a constante deterioração da moralidade, porque nada mais aprendemos nos ambientes burocráticos em que sobrevivemos, porque cansamo-nos do fenômeno avassalador da comunicação em massa, que a todos domina e converte, subjugando convicções individuais a um ilusionismo de formulações falsas; escrevemos porque, diante da inevitável poluição de corpos e mentes, aprendemos a aquietar-nos na tentativa de salvar o mundo, de carregar o fardo pesado da responsabilidade no intuito de harmonizar todos esses egos do tamanho de catedrais, e de buscar contribuir para a sobrevivência do formigueiro humano com a paz que procuramos adquirir, esperando que ela exija menos do que pode oferecer nosso exaurido planeta; escrevemos, portanto, porque acreditamos ainda na beleza da vida, na complacência e gratidão dos povos e raças, porque sabemos que um dia o sertão vai virar mar e a floresta irá nos acolher quando os espigões de concreto e vidro se enferrujarem, e quando as águas voltarem a rolar para encher os rios, acalmar as sedes, alimentar as almas, outorgando à nossa humanidade um sentido novo de espiritualidade e justiça; escrevemos porque, na perspectiva que as palavras fornecem, não conseguimos conviver sem tentar a cada dia alcançar, na forma e na rima, ou na falta delas, a atrevida conflagração que aspiramos de nós próprios: esta abstrata irracionalidade, uma beleza obsessiva, a mais perfeita heresia, a mais pulsante mutilação, o mais comovente sentimento de amor; escrevemos porque, no fundo, e no final de tudo, nos divertimos imensamente com a criação que buscamos, que tudo transforma em assombro, em incontinência, em lascívia e em ilusão; escrevemos, enfim, porque nos comovemos, de modo particular, com o folhear sensível do que ainda resta de nós.

 

Trecho de “Nós” (Fragmentos filosóficos de tempos incertos), do escritor Raul de Taunay

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