Cartilha aberta

CARTILHA ABERTA

A noite o encontrou do outro lado do oceano, sem saber exatamente quando ou com quem dividiria algum tipo de comida, e muito menos onde dormiria. O pensamento pairava acima das árvores, como o de uma alma penada, a balançar-se no silêncio de todas as interrogações: onde dariam as trilhas daquele caminho onde jamais tivera qualquer contato ou mantivera quaisquer esconderijos? Onde ou quando, em meio à grande massa de expectativas entrelaçadas, conseguiria resgatar-se da profunda emoção que o manietava ao impenetrável mundo do desconhecido. A vida como conhecia em sua terra terminara abruptamente como se fosse um momento aguardado e por tantas vezes adiado. Pela frente, centenas de campos repousavam e se sucediam entre a floresta e a cidade, como se a primeira fosse um preâmbulo confuso e emaranhado da segunda. Estava finalmente no continente esquecido, no mundo verdejante dos prazeres e sofrimentos compartilhados por poucos e, por um momento, permaneceu inerte, os olhos brilhantes examinando o chão macio por entre uma abertura nas folhas. Novamente, olhava as margens de um grande rio africano, e desta vez o fazia para certificar-se de que seu momento havia mesmo cambiado.
Naquela noite não dormiria em sua casa nem na floresta escura e fascinante, onde ecoavam selvagens e triunfantes os brados e gemidos dos animais grandes e pequenos, voadores e rastejadores, mansos ou ferozes, todos predadores das grandes matas, esfomeados organismos em busca da próxima vítima. Tampouco pegaria no sono numa esteira estirada no canto de alguma choupana. Muito pelo contrário, teria o quarto de um monarca, no alto de um compound representativo, onde flamejava no alto, acima das copas, livre e desimpedida, a bandeira nacional.
Subitamente, as vozes da floresta cessaram, paralisadas pelos lampejos vívidos dos relâmpagos e pelo estrondear estridente dos trovões. A tempestade veio carregada, balançando ferozmente a vegetação e carregando destruição e morte para as infelizes espécies menores, arrancadas pela pressão dos ventos dos seus abrigos nas camadas densas da mata tropical. Por muitos minutos, a fúria do dilúvio prosseguiu sem sossego, confinando os seres vivos ao encolhimento nos abrigos do medo. Depois, como o fim é o inevitável destino do começo, o inferno cessou e a lua se elevou sobre a selva.
Agora sim, a cartilha estava aberta para que ele iniciasse o aprendizado que não cessa nas lições que o aguardavam, para que ouvisse os ecos da nova vida que o envolvia. Não poderia ser perfeito, mas procuraria ser justo; e na balança que avistava diante de si, todas as culpas, as falhas, as inconsistências e os humores não teriam mais a menor importância. Seria esquecido com o tempo e se tornaria invisível, fundindo-se e confundindo-se com a essência que o levara a esta página derradeira do último livro da prateleira final, virada pelo passado de onde viera.
Agora sim, no tom de seu próprio canto, a vida continuaria…

(Raul de Taunay, Congo-Brazzaville, 6 de outubro de 2016)

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