Se dos anos que vivi neste mundo me permitissem retroceder no tempo e voltar a viver um período de minha vida eu não elegeria meus momentosfloridos em Paris ou Nova York, cercado de amores e programações sociais e culturais, nem mesmo a Londres da época do “swinging London”, dos anos sessenta, quando adolescente, aprendiz de violão, frequentava os concertos das bandas mais famosas do planeta, mas eu escolheria os vinte dias que passei num apartamento vazio e sem móveis, no oitavo andar de um prédio sujo e sem elevador, cujas paredes haviam sido perfuradas por tiros de metralhadora e bazucas.
Foi lá onde escrevi, de um pique só, muitas vezes à luz de velas, o romance “Meu Brasil Angolano”, num momento em que pairavam nos corações a tensão da guerra em Luanda e o medo da morte na rua escura. E não tive meio termo: ou assumia a imolação diária e furiosa que fustigava o meu descontentamento com a injustiça da guerra ou me limitava a vivero papel virtuoso de um burocrata distante, de bem com os seus bordados, plenamente satisfeito com o seu papel integrado ao sistema.
Como e de onde tirei o impulso e o vigor suficientes para realizar tamanho empreendimento naquela época de carestias e insegurança? Confesso, não foi difícil. Quem escreve vive em guerra permanente consigo mesmo. É uma batalha misteriosa, cansativa e muito desgastante, todavia, admiravelmente sutil, pois o escritor nem sabe ao certo em que momento a iniciou. O que sim sabe é que ele foi, e sempre será, um descontente, irreconciliado com a realidade, em desacordo com o mundo que o cerca. Por essa razão, a literatura brota em seu peito como uma forma de insurreição, que pode ser criticada, bombardeada, até mesmo banida pela censura dos critérios estabelecidos, porém nunca será resignada ou conformista. Jamais se transformará num ensaio econômico ou social, ou num serviço burocrático, pois sua função é arremeter contra a corrente, ser rebelde, ser raivosa, insurreição, promover incansavelmente fantasmas e sonhos.
Tomado de soberba, o escritor quer convencer seus semelhantes a acreditar em verdades que ele concebeexclusivas, sem se dar conta de que poderia estar disseminando a controvérsia e a agitação, e lamenta. Lamenta muito.Mas não lamenta o momento de apogeu de sua narrativa, o esplendor de sua credulidade, o fato de que sua obra, sendo um fim nela mesma, venha a ser destruída pelas críticas ou pelas traças.Na verdade, sabe que o que escreve envelhece de maneira terrível. Se dá conta de que sua obra, como todas as outras, desde o primórdio das letras, será, no final das eras, escassa em originalidade. Pois, de tudo já se fez um dia, e muito mais ainda resvalará no sorvedouro da eternidade. Nada ficará para estes tempos digitais de internet e joguinhos eletrônicos a não ser matar e morrer de brincadeirinha, filmar e ser filmado, controlar e ser controlado, automatizar, arquivar e classificar o resto. A liberdade cobrou seu preço: a morte da alma, o desaparecimento do conto, o fim do papel. O fim das traças.
Mundinho complicado é ocoração de autor…
(Raul de Taunay, Brasília, 1º de dezembro de 2014)