Aquele caminho

“Nos aventuramos a começar do início como se fosse a conclusão do que nem terminou ainda, assim como podemos terminar o que mal começamos, enquanto ainda temos o sangue fervendo, os ossos crescendo e uma história a contar; todavia, sempre que possível, colocamos os pés no chão, delicadamente, e caminhamos até os rios que estiverem próximos a nós para desenhar, nas margens, mapas do lugar ou lugares onde vivemos; não será preciso atravessar pontes, nem entrar nos navios para cruzar os mares, apenas desenharemos em terra firme nossos croquis, esquecendo as febres que nos arrebataram, os calafrios que nos sacudiram, os amores que tivemos, e os ventos que sobre nós sopraram – alguns foram como vendavais… quem não pediu um primeiro beijo ao seu amor e este, encabulado, ofereceu-lhe a bochecha e o canto dos lábios tímidos; quem mais tarde não desejou muito mais do que isso e recebeu, em dobro, o que lhe apetecia; quem nem sabe hoje o que teve, exatamente, e o que deve desejar ainda pois tudo teve e, de certa forma, foi feliz? O fato é que ainda não morremos, nem queremos morrer agora sem limpar a casa, arrumar os livros e colocar em nossas mãos os próprios dedos entrelaçados. Em um milhão de anos, ninguém saberá o que foi a estrada que nos levou, e levou nossa humanidade, por tantos séculos, da barbárie à angelitude; o que sabemos, isso sim, é que foi uma estrada longa e sinuosa, abarrotada de altos e baixos, declives e sombras, perigos e testes, e que a noite nos encontrou muitas vezes desprevenidos, do outro lado do oceano, sem saber exatamente quando ou com quem dividiríamos algum tipo de comida, e muito menos onde dormiríamos; nos primórdios o nosso pensamento pairava acima das árvores, como o de almas penadas, a balançarem-se no silêncio de todas as interrogações: onde dariam as trilhas daquele caminho onde jamais tivéramos qualquer contato ou mantivéramos quaisquer esconderijos?”

 

– Trecho de “Nós” (Fragmentos filosóficos de tempos incertos), do escritor Raul de Taunay.

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