Certo dia, meu amigo e colega na Secretaria-Geral das Relações Exteriores, Eduardo Prisco Paraíso Ramos, veio me contar a incrível novidade: ele e eu seríamos removidos para a Embaixada do Brasil em Paris. Ainda me perguntou: – “Você topa?” Como não poderia topar, sendo eu de origem francesa, nascido em Paris por força de circunstâncias diplomáticas e amante, desde sempre, daquela capital sonhada? Naquele instante, beirando os trinta anos, mal consegui disfarçar o quão afortunado e realizado me sentia ao estar sendo escolhido para aquela missão pois tinha plena noção que o que estava ME acontecendo era o que de melhor poderia acontecer a alguém de minha geração: viver em Paris!Ah, Lutece, capital dos gauleses, pátria de meus ancestrais, cidade mítica de artistas, filósofos, escritores, arquitetos e revolucionários imortais, que disseminaram aos quatro cantos da Terra não apenas a vanguarda de suas artes refinadas, a pureza de seus ideais humanistas e a estética urbana que encanta até hoje o mundo, mas, sobretudo, o fascínio que troveja sempre pelo ar quando se faz menção aos petiscos, variedadese criatividade de sua saborosa culinária e às múltiplas opções culturais e turísticas que oferece como nenhuma outra cidade que conheço.
Sem me dar conta, dormi aquela noite sobre uma lista gigantesca de coisas indispensáveis que precisava ver e fazer em meu novo posto. Naturalmente, ao longo dos três anos que ali morei, muito do que desejei fazer eu fiz e muito mais do que esperava ver e conhecer eu conheci, a começar pelo espanto desconhecido que me tomou e que sempre martirizava meu peito como se estivesse às gargalhadas, rindo-se de mim: – “quem você pensa que é, diplomatinha de araque, a querer dominar o mundo de Proust, Sartre, Flaubert, Chateaubriand, Victor Hugo, Balzac, Camus, Zola, Stendhal e tantos outros. Eu mesmo estremecia de embaraço, com os meus ternos modestos da Ducal, ao começar a conviver com o “grand monde” dos bulevares, jardins, monumentos, operas, teatros, galerias, museus, universidades, e com os contatos franceses no Quai d´Orsay, a chancelaria local, e nos demais palácios parisienses.
Todavia, não custou muito a que o tímido efebo botocudo se transformasse num exímio parisiense da gema, com ternos bem cortados, gravatas de seda, sapatos impecáveis e vivendo numa “chambre de bonne” reformada, com três janelas sobre o rio Sena, no último andar de um prédio no Quai Voltaire, em Saint-Germain, diante do Louvre. Era tudo muita areia para o meu caminhãozinho candango; porém, fui me acertando, conhecendo pessoas, realizando tarefas, servindo o Brasil da melhor forma que me permitiam meu nome francófono e meu sotaque francês bastante genuíno. Todavia, aqui e ali, não deixei de lutar contra certos preconceitos que perseguiam os funcionários da embaixada brasileira, vistos por muitos como representantes de um estado militarizado que abria estradas na floresta e enjaulava manifestantes e guerrilheiros. Por outro lado, testemunhei diariamente a admiração que a nossa realidade cultural, singela e exótica, despertava nos corações locais. Os franceses e as francesas eram verdadeiramente loucos pela nossa música e extravagância. Pasmava-me, constantemente, ao presenciar acadêmicos ou popularesdiscorrer sobre nossas virtudes, de forma sincera e provocante, como se o lugar do Brasil no panteão das artes já estivesse garantido por sermos justamente o país do carnaval, das morenas, do futebol, de Jorge Amado, João Gilberto, Tom Jobim, Vinicius de Moraes, Toquinho e, pasmem … Nazareth Pereira. Esta última, uma nortista desconhecida no Brasil, era uma personalidade em Paris, cantando pelas casas noturnas nossa música mais autêntica de raiz.
Recordo-me, como se fosse hoje, o dia em que ela e eu participamos do programa “Au Plaisir du Samedi”, do canal de televisão TF1, durante o qual ela cantou canções de seu repertório e eu comentei os aspectos densos e vibrantes de nossa realidade. Ela e eu, tão jovens ainda, transmitimos aos franceses uma energia distinta, cheia de vigor e alegria, que não deixou de ser enaltecida pela mídia no dia seguinte. Foram meus 15 minutos de fama e, para ela, mais uma justa homenagem pelo seu incansável labor de difusão de uma artéria de nossa expressão musical nem sempre relembrada. Há tempos na França, a Nazareth absorvera o jeitinho de ser das francesas, e eu, porque negar, adorava descobrir o que Paris tinha de melhor naqueles tempos: as francesas. Ao vê-las, ouvi-las, abraçar suas silhuetas graciosas, percorrer com elas os périplos de galerias, igrejas, caves, teatros, livrarias, parques, e tantas mais possibilidades de passeios, sentia-me um membro ativo dessa memorável “comédie française” sem fim, desse espetáculo do galanteio e das longas conversas que continua sempre, e até hoje, certamente, na forma análoga de uma imaginária caminhada pelos cais, ao longo do rio Sena, durante o qual o espírito humano ensaia as formas mais galantes, profundas e inteligentes de sua sintaxe romântica.
Especialíssima Paris, onde fiz uma bela provisão de livros e onde tive o prazer de conhecer figuras de peso, como o cartunista Lauzier, o filósofo e escritor Roger Garaudy,além de alguns outros autores que desenvolviam obras audaciosas para os padrões da época. Não podendo citar a todos, recordo as coleções maravilhosas, de tantas editoras famosas, que eram expostas nas livrarias para o exigente público local. Numa “soirée”, conheci a herdeira das “Éditions Guallimard”, a quem nada pedi pois ainda não tinha um romance sério para publicar. Contudo, em sua percepção de editora experiente, associou-me a Rimbaud após escutar uma de minhas poesias, e me fez entender que não era eu que havia escolhido Paris e sim era Paris que me havia escolhido. Me fez ver também que escrever era um exercício solitário, numa dimensão de prazer insólito e em parceria consigo próprio. Jamais esqueci suas palavras, nem deixei de me aventurar, cada vez mais, no seio daquele povo obstinado, charmoso, profundo, ao qual rendo minha homenagem na conclusão destas linhas.
Paris me despediu de mim de modo terno, numa manhã em que chuviscavam sobre ruas e avenidas gotas que traziam um brilho de lágrimas ao me ver partir. No fundo sabia que iria voltar um dia, como voltei, de fato, deleitado com a memória do que havia feito e entusiasmado em reviver nem que fosse um décimo do que havia vivido. Entretanto, o passado nunca volta e permaneci, como até hoje, a cada vez que volto, como uma ilha sem nome, no meio do rio Sena, a ver no cais a vida se renovando e eu, entre as águas frias, me reescrevendo.
(Raul de Taunay, Brasília, 3 de dezembro de 2014)