Brasilidade

Jardim Botânico – RJ

 

“Quem morou na África dos anos setenta sabe o quanto era difícil encarar as coisas; no meu caso, as malas diplomáticas chegavam uma vez por mês trazendo revistas, jornais e um monte de papelada sobre a qual me debruçava nos fins de semana, enfurnando-me detrás da escrivaninha, caneta em punho, para responder às solicitações da nação brasileira; todavia as malas traziam também livros de Jorge Amado, Erico Veríssimo, Monteiro Lobato, Guimarães Rosa, Fernando Sabino, e até do Visconde de Taunay , meu bisavô, com sua Inocência, tão bela e meiga, convertida para nós em realidade naquelas coleções antigas que representavam uma torrente inesgotável de divertimento que durava semanas, e que me permitiria interagir com a minha pátria tão distante e, todavia, por isso mesmo, tão amada; e qual não era minha perplexidade nas férias, quando ía ao Brasil, com aquela expectativa de rever parentes e gozar a incomparável brasilidade, ao ter de escutar de nossos familiares e amigos uma longa e, para mim, incoerente ladainha excitada e ruidosa de queixas, lamúrias e críticas àquele lugar tão gostoso, quente, de gente doce e sorridente, que havíamos aprendido a amar nos livros e revistas trazidos pelas malas diplomáticas; meu irmão xingava os políticos, minha irmã xingava o preço das coisas, meus primos xingavam a roubalheira e a corrupção dos políticos e poderosos, minhas primas xingavam os vilões das novelas da tv; o Brasil, de paraíso ensolarado, se tornava uma pardacenta encruzilhada de horrores que eu tinha dificuldade em compreender – qual a verdadeira razão de tal metamorfose? Afinal, aquela gente reclamava do que exatamente? Moravam numa cidade belíssima, de prédios altos frente ao mar, ou em casas espaçosas no Jardim Botânico ou na Gávea, com varandas sombreadas em ruas aprazíveis, ladeadas de árvores frondosas, e o verde por todo lado; além do que tinham o conforto da modernidade, a melhor e mais alegre música dos cinco continentes, a gastronomia mais recheada de ingredientes exóticos que eu jamais saboreara, o clima mais ameno, as praias mais belas, as morenas mais charmosas, e a bebida mais deliciosa da terra: o guaraná; nas ruas de paralelepípedos, em frente ao Parque Lage, eu ficava me recordando do tempo de minha infância quando, enquanto o bonde não vinha, a molecada jogava pelada com bola de papelão e meia e corria solta e livre entre as árvores e a lagoa; descalço e descamisado naquele lugar divino, era eu a imagem da felicidade, subindo nos muros, trepando nos troncos lenhosos e galhos, tomando guaraná, chupando sorvete das frutas mais variadas; tudo era tão bom, tão diferente, tão divertido e, no entanto, para os meus familiares e amigo, parecia que o mundo ia desabar e que o Brasil era pior que a toca do formigão; me recordo bem do teor das eternas manchetes nos jornais nacionais: “o Brasil à beira do abismo”; um abismo que não terminava nunca, que era eterno, válido para todos os tempos, pois a repetição de manchetes excomungadas era infinita, mesmo no alvorejar daquela atmosfera lírica do meu saudoso Jardim Botânico, que enchia a minha alma de um bem estar romântico; eu, o conhecedor das agruras africanas, me julgava um transgressor por me sentir feliz naquele país que todos criticavam com irrecorrível azedume; cáspita, estaria eu tão errado assim? Terminadas as férias, retornava resignado aos afazeres rígidos da minha rotina; as malas diplomáticas continuaram a chegar, e chegaram ao longo de toda a minha vida, com as mesmas revistas, as mesmas manchetes: o Brasil era uma droga. Todavia, nunca o foi para mim. Jamais…”

 

– Trecho de “Nós” (Fragmentos filosóficos de tempos incertos), do escritor Raul de Taunay.

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