“Sempre existirão êxodos, fluxos e descobertas, pois somos organismos vivos em constante movimento; sujeitos inconformados seremos sempre uns loucos, se formos meditativos, uns insensatos, e se formos aventureiros, pior ainda; a errância e o extravio castigam quem ousa investigar o desconhecido, culminando muitas vezes na desgraça, no abandono ou, no extremo oposto, no retorno glorioso do reprimido; e quando isso ocorre, esse experimentador bíblico viverá glórias ou virará lenda com sua pesada mochila de mapas, bússolas e provisões, seus pensamentos insatisfeitos e sua nostalgia de mundos maravilhosos; o sentido de aventura nos levará ao fundo e nos trará de volta com suas conclusões para melhorar o que existe e idealizar novos critérios ordenadores do convívio humano; sem andarilhos, a mesmice; sem aventureiros, a inércia; sem filósofos, a limitação; a lógica itinerante do pensamento nos empurra mar afora, ao encontro de nós mesmos, ao encontro desse extravio do qual jamais sairemos vivos. Quando enfim ficamos sós, depois de algum dia tomado por telefonemas, mensagens, obrigações, e, mesmo, cumprimentos para festejar ocorrências que nos concernem, tendemos a nos trancar em nossos mundinhos, nossos quartos, ou nos metemos a perambular pelas ruas, esperando que a noite permaneça calma e que o céu não descarregue suas águas sobre a terra – não naquele instante em que, vendo as estrelas e a lua, paramos, acautelados, para pensar na vida, para olhar as madeiras e galhos, para imaginar um círculo de pedras onde resolvêssemos acender uma fogueira: um pouco de álcool, uma caixa de fósforos e não tardou a que o jardim se iluminasse com a dança de labaredas que passaram a nos extasiar, aquecendo nossos condutos e instintos; até o momento de nos sentirmos os mesmos homens dos tempos imemoriais das cavernas, sentados diante do fogo, cumprindo o impulso atávico de esticar os braços para esquentar as palmas das mãos; e assim ficaríamos por muito tempo, acalentando memórias, destilando pensamentos, reflexões que fervilham juntas na combustão do lento e complexo processo que é o existir, respirar, fazer parte deste mistério planetário absoluto que ninguém ainda decifrou.
Belas as labaredas, aflorando da consumação do lenho e preenchendo nossos vazios com suas ardorosas chamas, tão furtivas quanto inquietas, a mostrar-nos um espetáculo que se entrechocava com a paz reinante na madrugada que nos abrigava.
Hora de dormir? Todavia, hesitamos…”
– Trecho de “Nós” (Fragmentos filosóficos de tempos incertos), do escritor Raul de Taunay.