Na vida de um povo há sempre um momento crucial; o nosso parece ser agora, pois, para nós, é difícil pensar em algo novo para fazer neste planeta que já não tenhamos feito, sobrando-nos a fúnebre perspectiva de morrer – isso sim, nós jamais fizemos, e, em verdade, nem sabemos se gostaríamos, pois apreciamos loucamente esta sucessão de acontecimentos diários a que chamamos existência, embora saibamos que, mesmo sem sermos ainda uns inúteis a serviço das máquinas, vivemos o bastante, sentindo o cheiro dos problemas do mundo, tentando resolvê-los, e resolver os nossos, que não são poucos, ocorrendo que, sendo procriadores, queremos ver nossos filhos saudáveis, com a postura ereta face aos solavancos mundiais que se aproximam, de modo inevitável, à luz do crescimento desmesurado da população global, que esquenta o clima, sacode os mares, estremece a crosta terrestre, e que nos fará pensar melhor, com mais solidariedade e organização, o modo de enfrentar as encruzilhadas da física, das finanças, das ideologias, e de nos preparar para defender as causas que abraçamos, essas sim, importantes, pois sempre existiram causas, desde os anos pré-históricos, quando umas sete ou oito espécies humanas compartilhavam a causa comum de sobreviver à selvageria; e hoje sabemos que apenas uma conseguiu e se multiplicou – a nossa espécie – organizada na batalha pela dominação, nos tornando tribos, depois aldeias, logo reinos, cidades e, em seguida, impérios, levando as outras espécies humanas à extinção, e assumindo a responsabilidade de trilhar atalhos cognitivos na direção do fabuloso homigueiro que vem por aí, o formigueiro digital, que disputará com os insetos organizados a supremacia deste astro celeste – e o que restará desta batalha ninguém sabe ainda, apesar das pesquisas e obras, do que conhecemos ou estimamos, porquanto as nossas culturas e conflitos são ainda migalhas do banquete milenar dos séculos, do qual restará tão pouco ou quase nada do que agora levamos na memória, assim como historias, obras, presunções, mitos, lendas, tecnologias e o que a nossa mão modifica, pois tudo será varrido com o tempo, restando talvez no ar a imaginação e o sonho, e, quem sabe, a voz imortal e feroz de algum filósofo, com a veia provocativa e curiosa de um poeta, disposto a ultrapassar as explosões no tempo e no espaço, envolvendo matéria e energia, moléculas e átomos, e a interagir a cada verso com o pensamento que guardamos, de pouco significado, mas transbordante de emoção… a mesma que sai destes organismos que herdamos e que doaremos, dando sentido e sabor ao mistério insolúvel da vida.
Trecho de “Nós” (Fragmentos filosóficos de tempos incertos), do escritor Raul de Taunay