Ontem fui à Escola de Música de Brasília para assistir a Recital de Violas em homenagem ao Maestro Carlos Galvão (1946-2009) que ocorreu no âmbito do Curso Internacional de Verão daquela instituição da Secretaria da Educação do DF. No programa, além de composições de Carlos Galvão, Puccini, Bach, Ernani Aguiar, Stryckers, Teleman e outros renomados músicos, assisti concerto de minha cunhada, Manoela Vasconcelos, com sua viola a liderar o Chroma para duas violas, e um outro concerto posterior, mais abrangente no repertório, de uma belíssima orquestra de cordas de violinos, violas, violoncelos e contrabaixos, regida por um Maestro bem jovem, aluno bem trajado, que parecia saber perfeitamente o que fazia. Dentre essa execução de cordas, só faltou a harpa, que eu acabei escutando antes do recital, quando, ao esperar pelo concerto, me meti por uma das salas da escola e me deparei com alguns instantes sublimes de corda pinçada por uma harpista, menina ainda,que parecia uma fada, acompanhada de outra aluna, flautistaadolescente,suave e ligeira, que também me fez viajar. Nas outras salas que visitei,me regalei, da mesma forma, com as vibrações de clarinetes, oboés, fagotes, trompas, tubas e trombones que davam às peças de Vivaldi, Haydn, Beethoven, Tchaikovsky, Debussy e outros, mistos de sons e massas sonoras e profundas, em “performances” marcadas do alento desta juventudecanarinha, bonita e talentosa, que me encheu de fé. Nunca poderia imaginar que, em pleno Planalto Central,no meio desta secura, houvesse um segmento de jovens tão inspirados e dedicados, que me fez lembrar da velha máxima de Thomas Carlyle: “a música é a fala dos anjos”. Sim, porque os anjos,naquele início de noite,estavam falando comigo a sua linguagem ressonante e grandiosa,como se desejassem receber com todas as honras o alienígena que era eu, e que não entrava num ambiente assim há vários anos. Com vigor e grandiosidade, a incrível escola de música “candanga” me tomou pela mão e me fez experimentar, tão logo iniciou-se o concerto, o regozijo do arrebatamento mais sincero que derivava da capacidade daqueles jovens locais em tornar viva, e radiosa, a música clássica.
E eu entendo algo disso. Do que escutei de meus pais, que sempre me levaram aos bons concertos e óperas, recordo-me de ter escutado que a música clássica já foi moderna e de vanguarda, havendo substituído e tornado mais simples e acessível a música barroca, tão complexa e cheia de escalas rápidas, notas e andamentos, que nem todos os músicos mais populares conseguiam tocar. A música barroca era exclusiva dos reis, rainhas e de uma aristocracia entendida e requintada. Mas, já não era moderna. A música moderna surgiu por volta de 1770 com composições mais simples, mais populares, que passavam a ser escutadas e apreciadas pelos comerciantes e pelos segmentos considerados mais baixos da pirâmide social daquela época, que mal entendiam ou compartiam o universo musical barroco. A partir daí, as orquestras, como as conhecemos hoje, começaram a ganhar corpo, juntando à direita os violinos e harpas, à esquerda as violas, violoncelos e contrabaixos, no centro as flautas, clarinetes, saxofones, oboés e fagodes, e atrás de tudo, distante do maestro, as tubas, trompetes, trombones, trompas e instrumentos de percussão, tais como caldeirões, bombos e caixas.Essa alquimia de sons levou tempo a se harmonizar, todavia, com o apoio das pessoas comuns, os concertos foram se tornando eventos destinados não apenas às cortes e igrejas, mas às populações cada vez mais arrebatadas.
Depois de aplaudir bastante o programa em que minha cunhada se apresentou, no caminho do estacionamento, topei ainda, no auditório central, com um recital de piano e violino de altíssimo nível que juntava Alexandre Casado, violinista e professor da Universidade Federal da Bahia, e Fabiola pinheiro, pianista e doutoranda por aquela instituição, com diversas passagens por teatros e salões na Europa e Estados Unidos. Sentei bem na frente e deixei o tempo passar, embevecido com os solos que escutei de Beethoven e César Franck. Quando tudo terminou, ainda comprei um CD de interpretações no piano de sonatas deErnesto Nazareth. Sentia-me um Maestro, postado entre os músicos e o público, com meu terno preto e a varinha na mão, marcando o tempo, o compasso, seguindo a partitura e zelando para que cada instrumento executasse, conforme o meu “tempo”, o andamento da melodia, em harmonia e dentro do ritmo.
É claro que ser um maestro verdadeiro é bem mais complicado do que sentar em seu carro imaginando conduzir uma orquestra sinfônica inteira num grande teatro, ou de conceber-se como um Brahms diante do órgão gigante, o rei dos instrumentos, pressionando teclas, liberando o ar sob pressão dentro dos tubos, impregnando o momento de “tocatas”, “fugas” e “sonatas”, patéticas, como a de Beethoven, ou não, em ré menor, fá maior ou seja lá em que nota for. A música quando penetra em nós parece anunciar a aparição de um anjo a gorjear como um flautim, num fundosonoro de cravos, pianos, celestes e carrilhões,a inebriar nossos sentidos. Ah, de quantos suspiros se faz a melodia?…
Adorei ter visitado a Escola de Música de Brasília. O Brasil pode estar uma porcaria, como dizem tantos, a vida caríssima, a corrupção vergonhosa, os salários pendurados e não pagos, os impostos e preços nas alturas, a segurança detestável e o meu Fogão pastando na Segunda Divisão, mas não a nossa música. Ela está na Primeira, inteira e revigorada, do jeito que eu presenciei hoje, na certeza de que, assim representada, ela continuará poderosa, emocionante e harmoniosa como a fala dos anjos.
Continuem falando, anjos do céu…
(Raul de Taunay, Brasília, 27 de janeiro de 2015)