Narizinho

Conta uma lenda singela, de tempos que longe vão, que Narizinho, a fada brasileira, debruçada num riacho de águas cristalinas, observava seu semblante jovial, e sonhava em abrir as comportas do reino das exuberâncias, sob um céu de estrelas marinhas, num chão de conchas e pérolas. Ao apertar a ponta de seu nariz, se surpreendeu com uma constatação:

” o meu nariz é ligeiramente arrebitado. No fundo bem sei, isto não tem a menor importância nem despertaria qualquer interesse a quem quer que seja, porém, o fato é que um nariz arrebitado, mesmo que discretamente, dá uma sorte danada à sua detentora. As garotas mais graciosas tem sempre, além do não sei o que, um nariz alçado às núvens. E, com os rapazes, nem se fala… Até hoje, mesmo sendo apenas uma adolescente sem formas, sinto por vezes os olhares dos amigos do Pedrinho, ou mesmo do Jeca Tatu e do Rabicó, a expedicionar ao longo do meu nasal.

Não tenho maiores atributos; não sou alta, nem tenho boa postura; sou, em verdade, uma simples menina da roça, e meus braços e pernas, ainda em crescimento, nunca fizeram qualquer malhação. Mesmo assim, como disse, de vez em quando, eles me olham de um jeito que me ruboriza. Olham sim, juro, como se o desejo desses mancebos cobiçasse um pedaço do meu nariz.

Ora, mas que pensamento tolo é este em que mergulhei desta vez, com tantas coisas importantes ocorrendo no mundo, tantos casos, tantos mexericos, e eu… eu aqui pensando num nariz! Todavia, não um nariz qualquer: o meu, que só eu tenho, e que é tão indispensável para minha auto estima quanto o poço de petróleo é para o Visconde. Afinal, o que eu faria com um nariz diferente?

Imagino-me albergando as narinas longas de uma mediterrânea, acostumada à bicanca saliente de seu marido, sobre bigodes espessos e soltos; depois me vejo hospedando o nariz reto e discreto dos arianos sobre o qual pouco se sabe ou se escreve. No fundo, o que se poderia escrever sobre um nariz? Se poderia constatar que o nariz é como a proa de um barco, ou a frente de um avião, ou então alertar que não se deve colocar o nariz onde não se é chamado. Se poderia, por outro lado, colocar o nariz na janela, levar alguém pela ponta do nariz, ficar de nariz torcido, rir no nariz de alguém, dar com o nariz na porta, ou não ver um palmo na frente do nariz. Se conseguisse, pensaria também nas fuças. Cada um tem a sua. A minha, passa por este nariz delicado com que Deus me brindou em seu divino sopro – valhei-o Nossa Senhora Santíssima com a proteção de seu sagrado manto.

E assim, fico apertando a ponta do nariz, diante das águas, pensando estas reflexões profundas, que atingem o cume mais elevado da metamorfose que encurrala estas narinas ao universo do picapau amarelo. Não sendo boneca de pano nem um sabugo falante, e sentindo o sopro da vida me transformar, observo apenas no riacho meu nariz arrebitado… ligeiramente. Deleito-me com ele, reino para ele – Deus o guarde.”

Amém, parece dizer o vento.

O texto se encerra. Narizinho se ergue, empina o rosto, olha em frente e retoma o caminho das páginas de papel de suas reinações. Mas, desta vez não é mais menina, é mulher.

(Raul de Taunay, Brasília, 19 de janeiro de 2015)

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