Acordei com o barulho da chuva. Torrentes de água caindo pelos condutos das calhas ao redor casa. O temporal de imensa intensidade e força cercava os cômodos, inundava os pisos, o jardim, a vegetacão da entrada, além da rua onde rapidamente se formou um verdadeiro córrego a deslizar por entre os carros estacionados sob a enxurrada. A barulheira estava ensurdecedora, acentuada por trovões constantes, que iluminavam a noite, e raios que pareciam faiscas de fogo, a cospir línguas elétricas pela atmosfera e a descer sobre a terra em sucessivos estrondos. A ventania, enlouquecida, sacudia não apenas as árvores e os toldos, como se desejasse arrancá-los de seus lugares, como também sinalizava ao mundo que era chegado um momento de desabafo celestial. A natureza estava enfurecida – e talvez os deuses também – como se o sistema frontal de um ciclone caribenho tivesse vindo visitar o nosso pacífico planalto central, marcado pelo equilíbrio sereno entre a seca do cerrado e as águas que se emendam pelas veredas.
Acordado, no meio da noite, assistia da janela aquele tremendo pé d’água que me fez temer, pela primeira vez, pela resistência do meu imóvel, construído sobre esta nossa terra vermelha. E se minha “palhoça” desabar?
Desci as escadas e fui conferir se as portas e as janelas estavam bem fechadas. No fundo, minha preocupação maior eram os condutos das calhas que certamente transbordariam se aquele mar de água e ventania continuasse por mais uns minutos, resultando na inundação interna de meu lar. Depois de tudo conferir, e ainda assustado com o destempero dos céus, sentei-me de frente ao jardim, indefeso e impotente diante da força ciclônica da precipitação. Certamente, Noé sentiu a mesma surpresa diante do dilúvio; apenas eu estava em desvantagem pois não tinha construído arca nenhuma nem era proprietário de qualquer barco para flutuar quando o lago Paranoá se tornasse um ente invasor da barragem e das construções do plano piloto. O sertão estava virando verdadeiramente um mar por todos os lados com as gotas volumosas parecendo um tiroteio sucessivo de metralhadoras desabando no chão. Ainda bem que as crianças, cansadas de um dia movimentado no Pier 21, não haviam acordado ainda de seus sonos profundos, o que era bom sinal. Não teria ninguém assustado ao meu lado para me agoniar ainda mais.
Repentinamente, um grande estrondo sacudiu os alicerces da casa, um trovão veio forte trazendo um relampago que iluminou a noite.
E foi aí que vi, no meio de meu jardim, bem dentro de meu terreno, um vulto. Apertei os olhos e a imagem ficou mais clara. Tratava-se de um homem de elevada estatura, aspecto grosseiro, que me olhava com intensidade, carregando numa mão um facão longo, como um sabre, e, na outra, pelos cabelos, a cabeça decepada de um homem. Seu olhar terrível de demente parecia ter descoberto em mim o próximo objeto do ódio que impregnava de sangue seus olhos vermelhos.
Um uivo seco escapou de minha garganta ao levantar-me de um pulo e correr para a cozinha arranjar alguma espécie de arma com a qual defender-me, e aos meus daquele ser horripilante. A ideia de que, se eu morresse, minha família seria vítima desse desconhecido assassino me encheu de coragem. Peguei a maior faca de cortar carne que encontrei e voltei para o lugar em que o vira, a mão apertando o cabo da faca, os sentidos atentos ao menor rumor. No coração trazia o sentimento ancestral da bravura que me fazia desprezar a vida no instante da luta. Um novo clarão iluminou o jardim e … o homem sumira, por onde?
Passei o resto da noite com uma lanterna e um tacape africano, bem maciço e pesado, procurando o intruso em todos os cantos da residência: corredores, quartos, jardim da entrada, jardim dos fundos, varandas, até no teto eu subi para descobrir o paradeiro do misterioso indivíduo. Quando o dia amanheceu, desisti de procurar. O temporal havia passado e tudo parecia menos apavorante.
Até hoje não sei se aquele vulto foi uma visão da morte, uma impressão externa das sombras ou o reflexo dos clarões no vidro salpicado pelas águas. O que sei é que, miragem ou não, levei um baita susto e que, se estou aqui, vivinho da silva, a escrever, é prova maior de que tudo não passou de impressão. E, que impressão!
Durante meses não contei nada a ninguém, todavia, a tempestade terrível que me acordou esta noite, e que desabou sobre Brasília no mesmo horário, e com a mesma intensidade, inspirou-me a revelar o segredo deste mistério que até hoje me assombra: que raios eu vi em meio a tantos raios? Raio de enigma que jamais vou desvendar.
Bom domingo a todos…
(Raul de Taunay, Brasília, 4 de janeiro de 2015)