Para Melhor

Há poucos dias ousei trazer algumas reflexões sobre o papel de Napoleão na história moderna, entretanto, ao reler o texto, pareceu-me que o contexto pairava solto no tempo, devendo ter sido introduzido por uma breve revisão do que foi, em sentido analítico, a Revolução Francesa de 1789 – a meu ver a maior e mais extraordinária explosão de eventos da história, que mudou a face do planeta e sangrou as veias de uma jovem nação, impregnada então de luzes e desespero. Foi um cataclismo que tomou várias formas: uma benção para as populações sofridas, uma embrulhada para as minoriasaristocráticase um exemplo moral, de natureza humana, que se irradiaria através da Europa.

Para a maioria dos historiadores, a revolução de Robespierre, Danton, Marat, Saint-Just, e tantos outros, inclusive das “poissardes” (mulheres do mercado de peixes), constitui ainda hoje a maior bifurcação de nosso tempo, o fim de tudo o que era milenar e intocável, tais como as desigualdades na sociedade, a alienação dos abastados e a ferocidade da tirania. O abalo gigantesco que ela provocou sacode até hoje as páginas da história, de modo imprevisível e sem retorno, pulverizando o absolutismo, como legado imposto, a injustiça, como regra institucionalizada, e a indiferença, como desculpa. Seu impacto brutal foi tão espetacular que cruzou os oceanos como uma onda a empurrar, para os tempos atuais, o borbulhar renovador de sua arrebentação.

Naturalmente, outros eventos da época foram relevantes e ajudaram a forjar nossa modernidade, como a Revolução Industrial (sobretudo a máquina a vapor e os telégrafos), o advento do capitalismo, o ideário social do comunismo, as descobertas científicas posteriores, porém foi a queda da Bastilha que verdadeiramente sacudiu a mesmice do curso das coisas e liberou a sociedade do jugo dos reis, dos nobres e do clero. E isso foi importantíssimo naquela época. Ao sublevar-se contra as injustiças, tão vivas naqueles tempos, a revolução azul, branca e vermelha trouxe pão para a boca dos pobres, democracia para a França e uma perspectiva de nova ordem para a comunidade internacional. Em crescente ebulição, o vulcão francês destilava não apenas ideias libertárias, altamente inflamáveis, mas também ideias iluministas que floresciam nas mentes locais e acendiam tochas nos corações insatisfeitos. A terra sagrada de Vercingetorix, Carlos Martel, Clóvis, Carlos Magno, Joana d´Arc, Rolando, e tantos outros, aglomerava de razão e ciências uma época que ousava desafiar a estrutura medieval arcaica. Arrastões sucessivos de inovações e vanguardashumanísticas e intelectuais tornavam a Paris do século 18 num coração que pulsava conhecimentos, como um centro filosófico ardente, que irradiava luzes para o futuro e mudanças. E, cada vez mais, esse centro inovador custava a digerir o “dictat” do Velho Regime.

Não tardou a que as populações de Paris, esfomeadas e enfurecidas, expressassem sua indignação com os luxos esplendorosos dos salões de Versalhes, onde reluziam os egos indiferentes de uma corte promíscua e decadente, que orbitava em torno da liderança hesitante de um rei inepto, ligado, por laços de conveniência, a uma princesa fútil e estrangeira. Abrigados em seu palácio dos sonhos, em Versalhes, a 19 quilômetros da capital, Luiz XVI e Maria Antonieta mal se davam conta da magnitude da revolta popular que se formava e que entraria em rota de colisão contra eles. Embora inexperientes, não tiveram visão nem compaixão, e continuaram a simbolizar um sistema que prevalecia desde a Idade Média, ditado pelo nascimento, que sustentava, com punho de ferro e inclemência, a riqueza e o poder nas mãos da realeza. O Parlamento, reunido sob “Os Estados Gerais”, dispunha a seguinte ordem de representatividade: os dois primeiros Estados, o clero e a nobreza, somavam 3% da população, enquanto que o Terceiro Estado, o resto da população, representava 97% dos franceses. Esse parlamento de três Câmaras, dividido injustamente, estabelecia que as duas primeiras câmaras tivessem mais votos que a terceira. Ou seja, a vontade de 3% da população predominava sobre a vontade dos 97% restantes.

A péssima administração que resultava dessa equação imperfeita permitiu aumentos calamitosos no preço da farinha para produzir o pão, prato principal da alimentação dos pobres. A terrível carestia, insuflada por um rigoroso inverno, azedou a frágil lealdade do povo a uma nobreza míope, que se deleitava com as extravagâncias do regime corrupto. Versalhes tornou-se uma ilha de fartura e esplendor, rodeada por um oceano de miseráveis. A fome transformada em fúria resultou no início de tumultos por todo o país, com casas saqueadas, padarias roubadas e lojistas suspeitos de esconder mantimentos linchados. Vozes, como as de d`Alembert, Diderot, Voltaire e Rousseau, despontavam como hinos sobre um povo ávido por pão e justiça. Uma população que se conscientizava de seu papel no controle do seu próprio destino pregava em Paris, e no resto da França, três princípios que até hoje amedrontam e escandalizam alguns: liberdade, igualdade e fraternidade. Nesse caldeirão revolucionário, os privilégios da aristocracia passaram a ser questionados ainda com mais veemência por três brilhantes mentes revolucionárias: Robespierre, o destemido líder da revolução e incansável advogado dos oprimidos, Marat, o jornalista raivoso e incendiário, e Danton, outro talentoso advogado, que chegou a Ministro da Justiça e cujo desempenho foi igualmente fértil na derrocada da monarquia francesa.

Orador sem igual, denominado “o incorruptível”, Robespierre emprestou seu conhecimento jurídico e a força de suas palavras para governar o ingovernável momento que se formou na França. Rapidamente silenciado pelos representantes do Primeiro e Segundo Estados (as câmaras da nobreza e do clero), e impedido, junto com seus colegas do Terceiro Estado, a entrar em plenário, transferiu a terceira câmara para o espaço de uma quadra de tênis, onde nasceria a Assembleia Nacional, uma comunhão de vozes desafiantes, que vociferava ao ar livre as vontades populares – o que horrorizou os nobres.

Foram as palavras de Robespierre e as proclamações da Assembleia Nacional que deram dignidade aos fatos que se sucederiam. Marat, nascido para a história através da liberdade de imprensa outorgada pela Assembleia Nacional, encontrou naquela oportunidade um atalho para externar seu descontentamento pessoal e político. Intelectual virulento e amargo, com uma doença de pele que o confinava a banhos medicinais, editou e escreveu um jornal bem sucedido, “O Amigo do Povo”, que salpicava discursos explosivos contra a realeza. Já Danton, outro notável orador, deu tudo de si para viabilizar a criação do Tribunal Revolucionário no momento em que observou, com acerto, que a Revolução estava infestada de traidores e espiões que colaboravam com as tropas reais estrangeiras que cercavam a França. Essas forças contra revolucionárias,para ele, dissimuladas e retrógradas, tudo faziam, dentro e fora do território francês, para barrar a vitória do movimento popular. Porém, em vez de ajudar, a intromissão em assuntos franceses dessas forças externas apenas piorou a situação dos jovens reis, empurrando-os para a guilhotina, após a tentativa malograda de fugir do país, o que, aos olhos da população, os convertia em traidores. Os monarcas deveriam estar ao lado de seu povo e não se esgueirando secretamente para unir-se aos inimigos da França. Esse e outros fatos, que dariam páginas, feriam mortalmente as aspirações dos franceses, levandoo povo revolucionário a atos descontrolados.

Todavia, nem de longe, a revolução se reduziu ao puro e simples emprego da guilhotina sobre as cabeças reais, e que, no fundo, era a forma mais indolor de execução da época. Ela viu-se marcada por eventos e medidas grandiosas, como a aprovação da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, a marcha épica da população de Paris sobre Versalhes (forçando o rei e sua corte a voltar para Paris e a conviver de perto com as necessidades e demandas populares), os debates acalorados entre as assembléias apoiantes ou não da monarquia, dos quais resultaram importantes reformas para o país. Nesse caldeirão de insatisfações e incompreensões, formou-se, em 1792, a Primeira República Francesa, nascida, para horror das casas imperiais européias, da convulsão e das pressões populares.

Com ela, o receio popular de invasões de fora e da ação contra-revolucionária interna radicalizaram a luta. Sob a liderança firme de Robespierre, o Comitê de Salvação Pública conseguiu mapear as táticas inimigas e afrontar as forças atuantes do que, para ele e o seu povo, era um retrocesso. Foi o início do que os historiadores chamariam de Reino do Terror, que durou um ano.Nesse período confuso de 1793/94, a revolução parecia não ter meios de poupar o sangue de suspeitos e acusados de traição, num momento em que, paradoxalmente, multiplicavam-se os decretos da Assembleia pelos direitos gerais da cidadania. Como diria Robespierre em um de seus manifestos: “terror sem virtude é desastroso, mas virtude sem terror é impotente.” A revolução defendia uma realidade melhor e mais justa, porém via-se levada a excessos para neutralizar areação monárquica.

Com as mortes posteriores de Marat, Danton e Robespierre, os excessos findaram porém a revolução sentiu-se órfã, à mercê do Diretório, que tomou o poder na França, e dos exércitos austríacos e prussianos,que apertavam o cerco, inclusive com o apoio dos fantásticos novos barcos de guerraingleses, verdadeiras plataformas, repletas de canhões, que ameaçavam o Porto de Toulon. Essa intromissão, deslavada para os franceses revolucionários, não queria deixar escapar da França o “maléfico” vírus da “liberdade-igualdade-fraternidade”,o qual causava tanto temor nos monarcas europeus da época,quanto o vírus do ebola causa nas autoridades sanitárias de hoje.Portanto, cercada de exércitos inimigos, a Revolução Francesa pairava na incerteza de um eventual retorno da tirania das cortes.

Contudo, ela não se rendeu, assim como não desapareceram seu espírito revolucionário, a democracia que ela engendrou, os direitos dos homens e cidadãos que ela defendeu, e a nova República que ela fundou. Muito pelo contrário, os ideais conquistados à margem dos solavancos revolucionários moldaram a nossa era moderna: o aparecimento das repúblicas, das democracias liberais, a evolução de sistemas políticos e ideologias, a difusão do secularismo, a distribuição mais justa do poder e das benesses econômicas, enfim, as várias melhorias sociais que gozamos hoje. Vários autores afirmam que a revolução terminou com a execução de Robespierre. Pessoalmente, não partilho essa tese. Cansei de ouvir de meu avô, que tinha meu nome, Raul de Taunay, e que era neto do Barão d´Escragnolle, cuja família se refugiou no Brasil para evitar a guilhotina, que a revolução francesa se teria estendido ao século 19, e mais além, pelas mãos firmes e corajosas de um pequeno caporal, destemido e brilhante: Napoleão Bonaparte. Não tardou ele, com seu gênio militar e astúcia política, a vencer batalhas, assinar acordos, empurrar os invasores para seus países e garantir a sobrevivência dos princípios revolucionários franceses. Princípios esses que acabaram reescrevendo, para melhor, muito melhor, o futuro da civilização ocidental.

“Marchons, marchons, les enfants de la patrie”…

(Raul de Taunay, Brasília, 21 de dezembro de 2014)

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